Texto por Pedro Dias
É como se The Clash surgisse após o punk. Após o pós-punk. Lá pra meados da década de 1990... E incorporasse ao seu som, ao invés de ska e reggae, elementos de rap, do rock dançante de Manchester e do lo-fi americano de nomes como Beck e Pavement. Essa é uma forma de tentar descrever o que é sentido ao escutar o som do Shame, banda formada no sul de Londres, em 2014, pelos então-adolescentes Charlie Steen (vocal), Charlie Forbes (bateria), Josh Finerty (baixo), Sean Coyle-Smith e Eddie Green (guitarristas).
Pertencentes a uma cena britânica de revival do pós-punk, que vinha ganhando cada vez mais força ao redor do planeta, antes da pandemia, o Shame compartilha da mesma ferocidade de outros destaques contemporâneos - como Idles e Fontaines D.C. -, porém, com maiores doses de provocação e bom humor. Seus shows já chamavam a atenção de crítica e público pela intensidade, personalidade e carisma dos jovens músicos, integrando alguns dos maiores festivais do mundo, antes mesmo do lançamento de seu primeiro álbum, Songs of Praise (2018).
Na casa dos 19/20 anos de idade, os garotos foram ao País de Gales para gravar, em 10 dias, as 10 faixas que compõem seu debute, isolados na fazenda que abriga o lendário Rockfield Studios, onde álbuns clássicos de bandas como Queen, Echo & the Bunnymen e Oasis também foram gravados. 10 dias... 10 canções... Nota 10/10? Não parece exagero, da perspectiva de quem já ouviu o trabalho dezenas de vezes.
Entre a carga ameaçadora da abertura Dust on Trial e a ternura derradeira de Angie, o ouvinte pode identificar várias das influências do grupo, como The Fall, Wire e Joy Division. Mas nem só de ecos de revolta soturna é feito o Songs of Praise. Concrete faz vibrar com seu diálogo entre vozes perturbadas de um mesmo ser, expurgadas aos berros, intercalados por Charlie e o baixista Josh. Logo na sequência, One Rizla começa com os dois pés na porta. Composição mais antiga e maior hit da banda, é uma lufada de ar fresco e autoconfiança adolescente, com riffs de guitarra e letra absolutamente contagiantes, sempre entregues com toda a honestidade que há nas cordas vocais de Charlie Steen - "... and you can choose to hate my words. But do I give a fuck?" Simples e inspirador.
Perversidade e perversão dão as caras no "punk-rap" de The Lick e na obscenidade mundana de Gold Hole (esse buraco aí mesmo que você está pensando), antes de Friction retomar a vibe divertida do álbum, em um número dançante e nostálgico, que homenageia, ao mesmo tempo, os nova-iorquinos do Television e os mancunianos do Happy Mondays. Esses moleques são demais!
A dica é: ouça e curta bastante o Songs of Praise, e os vários registros de sua turnê no YouTube, porque o que vem a seguir é bem esquisito, e a banda precisa contar com o voto de confiança de seus entusiastas para a absorção do Drunk Tank Pink (2021).
Lançado em janeiro, quase exatamente 3 anos após o debute, e com um dos momentos mais históricos vividos pela humanidade nas últimas décadas no intervalo, o segundo álbum do Shame é ambicioso, estranho, difícil, imprevisível e, principalmente, espetacular. Desta vez, a dinâmica das guitarras e o entrosamento com a cozinha da banda remetem bastante ao Gang of Four - se não conhece, ouça o seminal Entertainment! (1979). De nada.
Alphabet e Nigel Hitter escancaram toda essa estranheza e imprevisibilidade harmônica, que conta também com as baterias especialmente caprichadas de Charlie Forbes, o que pode ser ainda melhor constatado nas performances ao vivo, em que o integrante abre mão de seus corriqueiros backing vocals da turnê anterior, em prol da concentração necessária pras execuções. Em compensação, os guitarristas Sean e Eddie passaram a integrar o coro de vocais de apoio, sempre liderados por Josh Finerty, conferindo uma intensidade que alcança seu ápice em Born in Luton, que encerra o primeiro ato do disco.
March Day e Water in the Well formam um parêntese mais alto astral e ensolarado, enquanto Snow Day torna a esfriar e escurecer a atmosfera.
Então, por um breve momento, temos um lampejo de leveza melódica e palatável em Human, for a Minute, antes de Great Dog, 6/1 e Harsh Degrees se confundirem num combo de porradas que deixam o ouvinte mais distraído sem entender o que está acontecendo, quando termina uma e começa a outra.
A violência chega ao fim antes do álbum, que guarda em sua última faixa, Station Wagon, a representação de toda a poesia e loucura experimentada ao longo de seus 42 minutos de duração. Pra finalizar, deixamos algumas apresentações excelentes, e que certamente ajudam no processo de degustação do som dessa que é uma das melhores coisas que aconteceram no mundo da música nos últimos anos.
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